Reportagem
30 Outubro, 2023
As mulheres também vão a jogo
Apesar de dominar dentro de campo, Andreia, por ser mulher, continua a enfrentar disparidades salariais gritantes. As conquistas e o talento permanecem em segundo plano.
De segunda a sexta, Andreia Silva Alves, trabalha das nove às dezoito horas. Três vezes por semana, sai do trabalho e regressa a casa apressadamente, a tempo de se equipar e colocar as chuteiras no saco. Sábados e domingos são dedicados aos jogos, onde tenta arrebatar a baliza adversária e levar a equipa à vitória. É assim a rotina acelerada da atleta do Novasemente GD, da primeira divisão feminina do campeonato nacional português de futsal.
Andreia, ou Júnior, como é conhecida, andou “sempre com uma bola debaixo do braço”. O campo, perto de casa, enchia-se de alegria em vários confrontos futebolísticos entre os amigos. Aos 13 anos foi descoberta e abordada por um treinador de futsal. “Antigamente, o futsal não era o que é hoje. Eu gostava mais de futebol.” Depois de alguma insistência por parte do Sr. Ulisses, lá ficou o compromisso de experimentar uma vez o pavilhão. “Foi até hoje”.
Há quem não acredite em amores à primeira vista, mas a ligação de Júnior com o futsal foi assim que começou. Já não existe, porém foi no Babilhó, em Custóias que tudo começou. “Era relativamente perto de casa. Fiquei lá dos 13 aos 17 anos, fiz lá a minha formação quase toda”.
Aos 17 anos surgiu o convite de ingressar no escalão das júniores (sub-19) no clube Restauradores Avintenses. “Acabei por fazer pré-época com as séniores e por ingressar logo no plantel. Daí a minha alcunha, porque eu era a única júnior no plantel das séniores”.
Três foi a conta que Deus fez, porém Andreia não se ficou por aí. Jogou sete anos pelos Restauradores e atualmente representa pela sétima época consecutiva o grupo desportivo do Novasemente.
Com 30 anos, a atleta enfrentou um período na sociedade onde paridade ainda soava a palavrão. Reflexo da evolução, nunca sentiu “esse preconceito”. “No meio dos meus amigos, eu era a única rapariga a jogar, mas como até jogava bem, era sempre das primeiras a ser escolhidas... no meio em que estava inserida, acabou por ser uma coisa normal”. Mais tarde, na faculdade e mesmo no trabalho nunca foi alvo de qualquer discriminação por ser mulher com uma bola nos pés. Pelo contrário, “até gostam, e às vezes veem os jogos na televisão”.
Segundo os dados do Instituto Português do Desporto e Juventude, Portugal, nos últimos dez anos, ganhou 35 270 atletas mulheres. O futebol feminino, juntamente com o futsal e o futebol de praia foi a modalidade que ganhou mais praticantes, tendo um aumento de 5037 desportistas federadas.
Conquistaram o direito de competir, mas, o que podem fazer as mulheres num jogo que é dominado pelos homens?
Apesar dos progressos realizados no desporto feminino, persistem desafios importantes, nomeadamente em termos de visibilidade e condições de formação. A igualdade de remuneração é também ainda um jogo por ganhar. “Apesar de já não haver o preconceito, existem ainda as diferenças. No masculino acho que existem três equipas pelo menos que são profissionais... no feminino não.”
Em Portugal, algumas jogadoras de futsal recebem apoios “por baixo da mesa” que “não se podem chamar de salários”. Existe uma tendência clara de crescimento, porém, os valores envolvidos nunca chegam ao nível do masculino e sobretudo “nunca para viver”. “Quando eu comecei a jogar, as pessoas faziam literalmente por amor, porque não havia qualquer tipo de apoio. Agora, apesar de não ser profissional, há jogadoras que não fazem mais nada”.
Júnior viu o sonho a desvanecer-se. Foi convocada pela primeira vez à Seleção A portuguesa em 2013 (19 anos) enquanto carregava debaixo do braço os livros da universidade. “Acabei por ser uma jogadora assídua nas convocatórias seguintes”. Em 2014 representou o país no campeonato do mundo disputado na Costa Rica e, em 2015, foi chamada para a Guatemala.
Paralelamente à paixão pelo desporto, Andreia interessou-se pelos números e licenciou-se em Contabilidade no ISCAP no Porto. No mesmo ano em que viria a vestir verde e vermelho no torneio mundial na Guatemala, frequentava o estágio profissional do Instituto de Emprego e Formação Profissional português (IEFP) na sua área. O mundial desse ano exigia um período de ausência de três semanas. “Quando regressei, tinha uma carta em casa a justificar que pelo período de ausência seguido de 10 dias, implicava o despedimento por justa causa”. “Para mim não fazia qualquer tipo de sentido. Quase que era uma incompatibilidade dentro do sistema público português”, afirma ainda revoltada.
Por um lado, Andreia - paga em 75% do seu ordenado pelo IEFP. Por outro, Júnior - a serviço de Portugal, com brasão ao peito e talento nos pés. “Tive que meter na minha cabeça que não ia priorizar mais a seleção. Não estou disposta a arriscar, porque a minha vida vai ser a minha carreira profissional”.
Imagem: Novasemente GD
Andreia Silva encontrou realização profissional no meio dos cálculos. Desde 2016 que é Business Analyst na empresa SONAI. “Números é que são a minha vida”.
Duas paixões diferentes que se interligam e cruzam no entendimento do jogo, “o futsal não se joga com os pés, joga-se com a cabeça”.
Mas afinal, para quando a igualdade salarial no desporto?
A angústia que não apareceu na cara de Andreia até então, surge agora em questões políticas. “Falta visibilidade”. “Acho que muitas políticas e medidas são para inglês ver. Muitas delas é para dizer: nós realmente apostámos na formação e apostámos no feminino, contudo não acho que exista efetivamente uma vontade de formar. Existe sempre uma vontade que prevalece face a essa, que é a vontade de ganhar”.
A maior parte dos clubes masculinos portugueses da primeira divisão, se tiverem associada uma equipa feminina, ganham apoios de formação. “Existem essas medidas, mas são desviadas”. Não passa de um negócio e o “objetivo é ganhar”. “Não me parece que algum dia se chegue ao profissionalismo dos restantes desportos em Portugal, um país que só vive pelo futebol”.
Apesar de tudo, e quase se esquecendo do cenário descrito minutos antes, Júnior afirma com um ar leve, sorridente e despreocupado que ainda compensa jogar. “Eu gosto mesmo de jogar. Eu sou apaixonada pelo jogo em si. Pela parte bonita, pela parte tática, ou seja, pela parte pensante e intelectual do jogo”.
Pendurar as chuteiras não está nos planos próximos. Na presente época, em sete jogos, a camisola nº5 das “sementinhas” marcou cinco golos e fez quatro assistências. Ambiciona continuar a jogar e a ajudar a equipa a conquistar campos. Ser treinadora é o sonho que se segue.
Para mulheres que praticam o desporto ou são dirigentes de um clube, o curso (nível 1) de treinadora é de graça. Uma medida que visa incentivar e introduzir mais mulheres no ramo.
Apenas quando as mulheres receberem o apoio e reconhecimento que merecem, o desporto pode cumprir a sua promessa de igualdade de género. Alcançar este empoderamento, não é só uma questão de justiça, mas uma condição necessária para a evolução do campo desportivo no século XXI.
Imagem: ZeroZero